IN MEMORIAM
A inesperada e triste notícia do passamento do nosso frei Orlando golpeou duramente a nossa comunidade, a nossa cidade; o nosso Comissariado. Perdemos muito, muitíssimo. Pois além de ser um confrade amável, alegre, brincalhão, companheiro, deixou ele abertas lacunas imensas que dificilmente se preencherão de novo. Impossível seria enumerar aqui, neste espaço reduzido, pormenorizadamente, as múltiplas atividades exercidas nesta cidade montanhesa durante uma estada de apenas seis anos. Procuraremos porém, em traços toscos e gerais, esboçar os trabalhos iniciados, continuados ou reavivados por nosso frei Orlando. Os fatos testemunharão por si mesmos.
Fôra ele destacado como Padre Espiritual do Colégio S. Antônio, função esta que assumiu nos fins de 1938. Estava como que talhado para semelhante incumbência. Com a sua bonomia, com seu senso de humor, com seu espírito brincalhão não tardou em cativar a simpatia geral dos nossos estudantes. Com seu riso eterno, com suas gargalhadas gostosas e estrondosas (sempre um pouco retardadas) ao ouvir ou relatar das "últimas", soube ele amenizar sua árdua tarefa de diretor das almas, aplainando o caminho por onde trilhar como mentor no terreno espiritual. Inúmeras foram as almas reconduzidas ao verdadeiro caminho. No confessionário, no púlpito, nas aulas de catecismo (as quais, para os anos superiores, constituíam verdadeiras preleções de apologia, com amplo debate), ou como diretor da Congregação Mariana, impunha-se ele, espiritualmente, à nossa mocidade, de um modo categórico, porém suave, elevando a espiritualidade a um nível até então desconhecido.
Além destas atividades puramente espirituais ocupava as cadeiras de Português e História.
Eis aqui, em palavras resenhadas, as atividades de frei Orlando dentro do nosso Colégio.
A morte trágica de frei Orlando teve também uma repercussão descomunal na cidade de S. João del Rei, o que não é de admirar, pois que a nossa cidade lhe é devedora sob vários pontos de vista. E em primeiro lugar cumpre-nos mencionar aqui que frei Orlando era o pai dos pobres da nossa cidade. Não com espalhafato, não com ostentação: era-o às escondidas, e jamais viremos a saber o quanto tem feito neste sentido. Procurava os pobres, alimentava-os providenciava-lhes abrigos, levantava-lhes o espírito. Por volta do Natal fazia ampla distribuição de roupas. Foi ele o fundador da "Sopa dos Pobres", obra esta para qual soube entusiasmar o povo. Hoje em dia aquela instituição distribui, diariamente, mais de trezentos pratos de sopa.
Frei Orlando era também Diretor da Ordem III, e Comissário da mesma para Minas Gerais, conseguindo infundir-lhe um espírito novo, aumentando o número e intensificando a atividade.
Nisto tudo porém não se limitavam as suas atividades. Frei Orlando era pregador, pregador nato, que dispunha de uma espantosa facilidade para falar. Cada Domingo pregava, pelo menos, cinco vezes, ao passo que durante os meses de dezembro, janeiro, fevereiro e março ia pregar missões, tríduos, retiros, etc. Nas horas vagas, se é que tais horas de lazer existiam para ele, redigia artigos para "O Santuário de Sto. Antônio Presidenciava um "Círculo de Catecismo", freqüentado por número seleto de intelectuais, dava aula de catecismo na nossa Capela externa, ia, todas as semanas, dar catecismo no "N. Snr. dos Montes", encontrava tempo para promover festas em prol da Obra do Catecismo, e inventava piqueniques para catequistas e crianças. Ia atrás das zeladoras da "Obra Pia da Terra Santa", da qual era propagandista convicto, trabalhava intensamente para as Vocações Sacerdotais Franciscanas, mantinha ampla correspondência, era freqüentador assíduo do "Albergue", ouvia confissões por toda a parte, e corria atrás dos doentes num afã somente explicável por sua profunda convicção religiosa e sua fé inabalável numa vida de além campa.
Será desnecessário acrescentar mais a esta enumeração árida. Afim de compreender a obra de frei Orlando é mister haver convivido com ele, em íntima privança, havê-lo visto de perto, haver apreciado seu bom humor, a sua espirituosidade, até nos momentos mais difíceis. Frei Orlando era o tipo do homem que "trabalha com facilidade", para quem enfiar uns dois dedos de prosa com um "Chico Brugudú" era a mesma coisa que manter uma palestra em forma com pessoas da alta sociedade. Para todos era o mesmo: contador de prosa, trocista, mas... sério.
Foi-se embora o nosso frei Orlando, o nosso "Tio João Caiu no campo de batalha. Morte trágica, morte heróica, morte que nos deixou, a nós, com os olhos a marejar lágrimas. Mas por muito tempo ainda a recordação de frei Orlando continuará viva nos corações gratos do povo de S. João del Rei. E não somente nos corações do povo, mas também nos nossos corações: nós que o conhecíamos, nós que o amávamos. Grande tem sido a perda, irreparável talvez. Pois uma das melhores qualidades que possuía, qualidade esta talvez pouco acentuada mas por isto não menos verdadeira, foi a seguinte: frei Orlando era um homem, cem por cento brasileiro, cem por cento patriota, mas igualmente um homem que conhecia e compreendia, cem por cento também, a nossa índole holandesa, um homem que conseguia, sabiamente, casar estes dois elementos, harmonizando-o a ambos para o bem espiritual e material do seu querido povo. Constituía ele uma ligação entre as duas mentalidades heterogenias. Foi esse talvez o golpe mais pesado que a morte de frei Orlando desferiu contra o nosso Comissariado, embora seja certo que frei Orlando não cessará de interceder por nós neste sentido,com frutos talvez mais sazonados.
São João del Rei; 16 de março de 1945.
Curriculum vitae - Frei Orlando Álvares da Silva nasceu no dia13 de fevereiro em Morada Nova, fez seus estudos ginasiais em Divinópolis, o sexto ano, porém, no Colégio Seráfico de Sittard na Holanda. Entrou no noviciado em 1931 (Hoogkrutz). Depois da sua profissão solene no convento de Alverna de Wijchen, voltou para o Brasil em 1935. Ordenou-se em Divinópolis aos 24 de outubro de 1937, ordenação conferida por Sua Excia Dom Antônio dos Santos Cabral, arcebispo de Belo Horizonte.
Em setembro de 1938 foi nomeado padre espiritual do Colégio S.Antônio de S. João del Rei onde continuou com seus múltiplos trabalhos até ver realizado seu grande desejo de acompanhar as Forças Expedicionárias como Capelão Militar.
Partiu para o Rio de Janeiro no mês de julho e embarcou para a Itália em 20 de setembro de 1944. No dia 20 de fevereiro faleceu na frente da Itália.
Na qualidade de Capelão Militar, ele mesmo nos informou muitas vezes sobre o movimento religioso do 11º R.I. O que nós queríamos saber, onde e como se faz a guerra na Itália ficou segredo. "Naturalmente", assim escreve ele na sua última carta dirigida ao M. R. Pe. Delegado, "pouco posso dizer sobre a nossa frente. Entretanto os meses de inverno foram árduos e nestas regiões difíceis. Agora não sei o que nos espera. Pessoalmente os perigos são constantes Sabemos que ele esteve em Roma duas vezes, onde se entreteve com o Vicarius Generalis fr. Policarpo, e foi recebido em audiência pelo Papa, conversando com ele em português.
Depois da sua licença voltou para a primeira linha. "As granadas (palavras de Fr. Orlando) cruzam dia e noite sobre as nossas cabeças, as que vão e as que vêm. O lugar onde me encontro é sem perigo, porque temos uma boa defesa num alto morro logo atrás da casa. Entretanto visito diariamente aos soldados nas suas tocas (os conhecidos fox-holl) sem me preocupar com o que der ou vier.
Francamente considero-me "renascido" e cheguei a conclusão que este negócio de guerra é negócio de muito mau gosto
Por Frei Felicíssimo Mattens.
Fonte: Revista dos Franciscanos da Província Santa Cruz, 1945, p. 62 a 64.