A situação. - Quando em 1917 o nosso Padre Comissário estava fazendo a visita canônica na paróquia de São Miguel de Jequitinhonha, ouviu dos nossos freis quão triste era a situação da nossa santa religião em São João de Vigia, situada à distância de nove léguas rio abaixo e onde os nossos padres já tinham ido algumas vezes. Vigia é uma aldeia florescente, muito bem situada à beira do Jequitinhonha, o mais bonito lugar de todos os outros deste rio, segundo testemunho uníssono dos viajantes. A paróquia é muito extensa, cerca de 5.000 Km2, a terra é fértil, a mesma terra das florestas de Teófilo Otoni e de São Miguel. Segundo opinião geral, este lugar terá um grande futuro.
No sentido religioso, porém, a situação é triste. Protestantes de várias seitas estão penetrando lá, vindos da Bahia, e já conquistaram alguns adeptos. Até uma espécie de colégio já tinham fundado em Vigia, embora nada mais do que um curso primário, todavia essa escola fazia muito mal; mesmo que não fizesse bons protestantes, criava indiferentes pouco amigos dos padres e dos santos sacramentos. Infelizmente, Vigia não tinha um vigário que com força pudesse sustar a influência do protestantismo. Havia lá um vigário, mas era velho, de quase 80 anos, e já estava caducando. Além disso, no tempo em que ele ainda era forte, não se conheciam por aqui os protestantes, de maneira que ele agora não tinha mais condições de compreender quão perigosos eram os mensageiros protestantes para a fé de seus paroquianos.
Com dó desse rebanho abandonado e exposto aos lobos, o nosso Padre Comissário - que naquele mesmo ano de 1917 se encontrava em Teófilo Otoni com o bispo de Araçuaí - propôs a Sua Excelência colocar um dos nossos padres como coadjutor em Vigia para auxiliar o velho vigário. Dom Serafim, que conhecia muito bem a situação em Vigia, mas não dispunha de nenhum sacerdote, aceitou com alegria e gratidão essa proposta.
Frei Samuel, que em Teófilo Otoni e Joaíma se demonstrara trabalhador incansável e intrépido, foi escolhido para essa tarefa difícil. No dia 29 de agosto de 1917, Frei Samuel chegou à Vigia. A matriz estava num estado deplorável. Além desta, ainda havia outra capela dedicada à N. Sra. da Ajuda; perto dessa capelinha Frei Samuel alugou uma casa. Bem depressa Frei Samuel pediu e ganhou um coadjutor, pois Vigia tinha de ser dada assistência também à extensa paróquia de Salto Grande, que antes pertencia aos padres de Joaíma.
Luta. - Apenas chegado e instalado Frei Samuel começou a luta contra o protestantismo e do modo, i. é, dando instrução religiosa. Para sua felicidade achou como professora da escola pública uma boa católica. Por conseguinte começou-se a dar catecismo na capela de N. Sra. e também na escola. Além disso, nas suas pregações Frei Samuel apontava a seus fiéis a grave obrigação de não ir participar do culto protestante e de não mandar seus filhos à escola dos crentes.
Frei Gualberto Schoonhof de Joaíma foi assistir ao Frei Samuel em Vigia do dia 20 de julho até 3 de novembro de 2008. Voltou a Joaíma e Frei Luiz Geldens foi no seu lugar como coadjutor a Vigia, onde chegou no dia 15 de novembro de 1918. (RSC 1974 p. 312).
Desse modo os nossos padres levaram o protestantismo em Vigia a perder sua influência e a escola protestante foi algumas vezes fechada provisoriamente. Depois tentaram abrir a escola novamente, mas sempre com menos resultado, até que finalmente, em 1921, o diretor do colégio protestante vendeu seu mobiliário escolar e se mudou para uma fazenda, demonstrando assim que abandonaria a luta.
Essa bonita vitória, porém, não foi alcançada sem esforço. Os protestantes e seus protetores aproveitavam de qualquer ocasião para perseguir os padres.
A primeira ocasião foi a declaração de guerra de guerra do Brasil à Alemanha, em 1917. Não obstante os seus trabalhos, Frei Samuel não negligenciou, em Vigia, seus estudos fotográficos. Sempre viajava com sua bússola e seu conta-passo, com altímetro e mais alguns instrumentos, indagando os roceiros sobre as cabeceiras e rumos de todos os rios e córregos, tomando nota de tudo. Ele gostava também de fotografar lugares pitorescos. O resultado desse trabalho todo foi um mapa da paróquia de Vigia, como ele já fizera o de Teófilo Otoni, de Salto Grande e de São Miguel. Isso era para os protestantes uma boa oportunidade para fazer o povo desconfiar de Frei Samuel. Em fevereiro de 1918, ele foi denunciado ao Governo de Minas como espião dos alemães, e um tenente militar foi mandado especialmente de Diamantina à Vigia para investigar o caso. Felizmente o tenente tinha de passar por Araçuaí e o bispo chegou a ouvir sobre o caso. Imediatamente o bispo telegrafou ao chefe da polícia militar afirmando que Frei Samuel não era alemão, mas holandês; que ele, o bispo, se responsabilizaria por ele e solicitava que o tenente recebesse ordem de acordo com ele, o bispo. Essa ordem foi dada e o bispo combinou com o tenente que deveria ficar em Araçuaí e Frei Samuel seria solicitado a vir a Araçuaí. Frei Samuel, chamado por um telegrama do bispo, veio imediatamente e fez as 40 léguas em 4 dias. Como tivesse chegado à noite, dirigiu-se ao palácio do bispo e, no dia seguinte, foi procurar o tenente. O homem da polícia militar, que nesses quatro dias teve tempo de cair na realidade de estar fazendo um papel muito ridículo, tinha viajado muito cedo de volta para Diamantina. Pode-se imaginar como foram boas as gargalhadas de todos, menos a dos protestantes.
Também as aulas de catecismo na escola pública foram aí, como também em Joaíma, uma pedra de tropeço. Em 1919, Frei Samuel foi denunciado por esse horrível crime e o delegado escolar local, que não sabia ler nem escrever, mas apenas sabia desenhar seu nome, era chefe político e inimigo dos padres, proibiu terminantemente o ensino religioso na escola, como sendo contrário ao caráter neutro do ensino oficial. Mas Frei Samuel não se deixou intimidar e apelou para o delegado escolar distrital, que - graças a Deus - era um senhor muito compreensivo e deu a seguinte resposta, baseada em decretos sempre repetidos do Governo de Minas Gerais: O Governo do Estado de Minas Gerais, longe de proibir o ensino religioso nas escolas públicas primárias - ao contrário muito o estima - lhe dá toda liberdade, contanto que seja fora do horário escolar. De novo o ataque foi revidado.
Trabalho na roça. - Os padres tinham o seu trabalho não só na sede, onde se travou o grande combate contra o protestantismo em parceria com a política local e com a imoralidade, mas nas duas extensas paróquias de Vigia e de Salto Grande, com um total de 9.000 km2. É muito difícil dar ao leitor uma idéia dessas viagens constantes, às vezes de um mês ou de seis semanas a fio, debaixo de sol abrasador ou de chuvas tropicais, por rios cheios e estradinhas lamacentas. E depois de ter cavalgado diariamente quatro, seis ou ainda mais léguas, o padre tem de pregar, ouvir confissões e rezar com o povo o terço e preparar os papéis de casamento e na manhã seguinte tem novamente de ouvir confissões, fazer casamentos, em seguida celebrar missa com homilia ou catecismo e por fim, fazer os batizados. Seja suficiente mencionar que até a saúde de Frei Samuel, que parecia resistente a tudo, ficou abalada e ele começou a sofrer dos pulmões. Já em 1918, os padres lazaristas, que estavam pregando missões lá perto, deram informações pouco animadoras sobre a saúde dele.
Frei Samuel, vigário e decano. - No dia 23 de fevereiro de 1920, faleceu o velho vigário, o Padre João Paulo de Souza Barbosa, na idade de quase 83 anos. A 10 de março, Frei Samuel foi nomeado vigário pelo bispo e, a 28 de abril seguinte, nomeado decano do recém-ereto decanato de São Miguel.
Nova luta. - Em junho do mesmo ano (1920), vieram pedir a Frei Samuel para fazer a festa de São João Batista, o padroeiro da paróquia, com novena preparatória. Frei Samuel recusou, porque os festeiros não queriam prometer prestar conta das receitas e despesas. Para compreender o caso, sirva a seguinte explicação: Para uma festa religiosa são nomeados festeiros, pessoas que se encarregam, ou melhor, que são encarregadas pelo vigário de receber e pagar as despesas. Para evitar abusos esses festeiros evidentemente devem prestar contas do dinheiro recebido e gasto e a lei do nosso bispado prescreve que o vigário não deve fazer festa, quando os festeiros não estão dispostos a essa prestação de contas.
Frei Samuel, portanto, estava em seu pleno direito. Mas um bando de moleques que não estava de acordo com isso abriu à força a capela de N. Sra. da Ajuda, que servia provisoriamente de matriz, retirou de lá a imagem de São João e fez a procissão sem vigário. Frei Samuel queixou-se à polícia, que, porém, não agiu. Coincidiu exatamente nessa ocasião que alguns bons amigos de Frei Samuel, amigos de certa influência, estavam ausentes do lugar, pois muita coisa poderia ter sido evitada. Após esse sacrilégio cometido, Frei Samuel retirou da capela o Santíssimo Sacramento, guardou-o em sua casa e não fez mais atos religiosos nessa capela. Felizmente o bispo estava na vizinhança em visita pastoral. Frei Samuel fê-lo ciente de tudo e Dom Serafim aprovou o que o vigário tinha feito, até ele mesmo impôs o interdito à capela e também à velha matriz, e denunciou o ocorrido à polícia. Veio então a polícia de São Miguel, investigou tudo e tomou nomes dos desordeiros para serem intimados. Que a polícia primeiro não agisse e agora de repente fosse tão severa, era devido à influência do bispo à política local.
Frei Samuel, que ultimamente já se sentia extenuado e enfraquecido, pediu e obteve autorização de deixar Vigia para ir morar em São Miguel. Continuou, porém, como vigário de Vigia. O coadjutor, Frei Luiz Geldens, estava com o bispo na visita pastoral. No dia 23 de julho, chegou Dom Serafim pessoalmente a Vigia. Vieram pedir-lhe perdão pelo ocorrido e logo o bispo suspendeu o interdito. Depois de uma solene procissão, foi recolocada a imagem de São João no seu lugar na capela de Nossa Sra. Após muito suplicarem, os culpados conseguiram que o bispo pedisse a suspensão do processo.
Frei Samuel, abalado em sua saúde, não sentia muita vontade - após o ocorrido - de voltar para Vigia. Ele pediu e obteve sua exoneração como vigário e foi sucedido por Frei Feliciano Smitz.
Supressão da residência. - Em 1922, o Mui Revdo Padre Provincial Frei Simeão Bennenbroek veio fazer a visita canônica. Consultou diversos freis de Araçuaí e de São Miguel a respeito da paróquia de Vigia. Após ter ouvido as diversas opiniões, o Padre Provincial resolveu suprimir a residência de Vigia que, aliás, nunca fora definitiva. O vigário Frei Feliciano foi nomeado coadjutor em Teófilo Otoni. O coadjutor Frei Luiz, podia ficar em Vigia até que viesse o novo vigário. Como o bispo não tivesse nenhum padre à disposição, Frei Luiz partiu finalmente para São Miguel e ambas as paróquias, a de Vigia e a de Salto Grande, são administradas, desde o começo de 1923, por São Miguel.
Por Frei Helano van Koppen
Fonte: Vinte e Cinco anos no Brasil, P.171-175
Fonte: RSC 1974 p. 312.