IN MEMORIAM
No começo de outubro chegaram aqui notícias da Holanda que Frei Estevão tinha falecido calmamente no Hospital "Calvário" em Maestricht no dia 23 de setembro. A causa da morte foi angina pectoris. Ultimamente sofreu muitos ataques, enfraquecendo cada vez mais. A grande aflição, própria desta doença, fê-lo sofrer bastante. mas uma vez passado o ataque voltaram logo o bom humor e a vontade de caçoar. Plenamente consciente morreu em presença do Pe. Guardião, alguns parentes e confrades. No dia 26 realizaram-se as exéquias. Fr. Eugeniano Kupka, professor de S. João del Rei, e fr. Eurico Peters representaram ao túmulo o nosso Comissariado.
Curriculum vitae - Fr. Estevão nasceu em 4 de agosto de 1885, recebeu o hábito franciscano em 7 de setembro de 1905, fez a sua profissão solene em 1909 e ordenou-se em 17 de março de 1912. No mesmo ano deixou a pátria para trabalhar no Brasil.
Naquele tempo quase todos os padres novos aprenderam português em Ouro Preto, assim também a primeira residência do "Stef" era a nossa casa em Ouro Preto onde permaneceu de 28-11-1912 até 24-12-1913. Depois recebeu a sua nomeação de professor do Ginásio Sto. Antônio, onde lecionou durante cinco anos (de 24-12-1913 até 1-12-19l8). Transferido para Corinto recebeu depois de um mês a sua nomeação de Vigário de Cordisburgo por provisão de 30 de dezembro de 1918, chegando em Cordisburgo em 12 de janeiro de 1919. Tomou posse da paróquia de Sto. Antônio da Lagoa aos 19 de janeiro e do Curato de Santa Rita do Cedro aos 23 de fevereiro do mesmo ano. Começou com a reforma da Igreja do Sagrado Coração em Cordisburgo em 7 de agosto de 1919 sob orientação do Irmão Werenfrido CssR, mas não pôde terminar a obra. No mês de março de 1921 pregou o retiro aos alunos do Ginásio de S. João del Rei. Iniciou a construção da casa paroquial em junho de 1921, inaugurando-a em janeiro de 1922. Quatro anos apenas estava fr. Estevão à frente da paróquia de Cordisburgo. Em 16 de dezembro de 1922 foi nomeado diretor do Ginásio S. Antônio, chegando a S. João del Rei em 25 de janeiro de 1923.
Os melhores anos de sua vida e da sua grande atividade Fr. Estevão dedicou ao ensino secundário, desdobrando os seus talentos e dotes de coração e alma sacerdotal no Ginásio de S. João, deixando depois da sua volta para a Holanda e agora depois da sua morte nos corações dos colegas e ex-alunos saudades indeléveis do confrade inteligente e enérgico, do pedagogo e professor competente.
Fr. Estevão era brasileiro naturalizado e sempre se ufanava da sua cidadania brasileira, não permitindo censuras e críticas que pudessem diminuir a apreciação que o Brasil e os ingentes trabalhos dos Padres do Comissariado merecem.
Apesar da sua saúde abalada dava ele com muito prazer e gosto aulas de português aos padres novos destinados para o Brasil. A última coisa que ele fez antes de ser internado no hospital foi lecionar português; o esforço grande acelerou talvez o ataque final que matou este homem valente e corajoso, este batalhador sem temor e respeito humano, este sacerdote de qualidades extraordinárias.
Sobre a sua atividade na árdua mas honrosa tarefa da educação da mocidade brasileira, escreverá algumas reminiscências fr. Lourenço van Veen, também professor e ex-diretor do Ginásio S. Antônio e colega dele durante muitos anos.
Frei Estevão se encontrava ainda em Ouro Preto quando cheguei ao Brasil, com destino a S. João del Rei, onde frei Florentino, a pedido do Mons. Gustavo, abrira o internato do Ginásio Santo Antônio; pois, o externato era freqüentado por um número reduzido de alunos. Logo no início, a freqüência do internato ultrapassou a nossa expectativa, e de tal modo, que o número de padres era insuficiente para tantos alunos.
Foi então que, em boa hora, o Revmo. Comissário, Pe. frei Júlio Berten, mandou fr. Estevão para S. João del Rei, fornecendo, desta maneira, talvez inconscientemente, mas certamente em pleno acordo com a Divina Providência, os primeiros raminhos e flores para a coroa de louros que iam cingir-lhe a cabeça, como professor e, sobretudo, como diretor do Ginásio Santo Antônio.
Frei Estevão chegou e tanto bastava para conquistar o coração dos seus confrades e de todos os alunos. Parecia nunca ter leito outra coisa; com tanta facilidade movia-se entre todos. Com excelsa bondade de frade e fogosa impetuosidade de padre-moço, dedicava-se ao árduo labor de modelar os corações algo ríspidos, porém sensíveis, dos nossos alunos. Pouco exigente para si, não se queixava do sustento exíguo da sua vida franciscana; pois, o Comissariado era pobre e havia uma falta absoluta de recursos. Somente, não se conformava com a idéia de o Ginásio funcionar num prédio impróprio, uma antiga fazenda que, com o mínimo gasto de dinheiro, foi transformada, pomposamente, em um Educandário. Tantos alunos internos, e nem lugar para dormir; pois, de noite, frei Norberto ia dormir, com uns 40 a 50 alunos menores, numa casa, perto do Ginásio, transformada em dormitório; enquanto frei Estevão e eu fôssemos dormir, com uns 60 alunos médios, no centro da cidade, em duas salas alugadas de uma casa que já havia servido para Ginásio. E lá, quando os alunos já estavam dormindo, quantas vezes ouvi a vez do fr. Estevão, queixando-se comigo da falta de conforto para os alunos!
Mas, felizmente, frei Júlio já tinha dado ordem de construir, na chácara do Ginásio, uma casa grande para dormitórios e refeitório e todos entregaram-se a uma ruidosa alegria no dia em que o novo prédio foi inaugurado. A dificuldade maior ficou vencida; a primeira batalha estava ganha. Entretanto, toda boa obra conhece as suas adversidades. Frei Estevão foi removido, como vigário, para Cordisburgo. Havia tanta falta de padres e o Ginásio, já naquele tempo, foi escolhido como primeira vítima. Se isso tivesse acontecido na vida turbulenta de uma sociedade mundana, um ato daqueles tinha provocado uma revolta; mas na vida tranqüila de uma Ordem religiosa, quem manda, manda e quem não manda, obedece. Frei Estevão partiu, deixando imensas saudades entre todos. Mas também, quando, poucos anos depois, a diretoria ficou vaga, todos, "una voce", reclamaram a volta de Frei Estevão, como diretor do Ginásio S. Antônio. Como haviam chegado mais padres, tinha cessado o motivo de sua saída; e o Comissário não querendo contrariar a vontade de tantos confrades, restituiu frei Estevão ao Ginásio, mas, desta vez, como diretor. E foi como diretor que ele podia realizar todos os seus sonhos de um ginásio amplo e confortável que pudesse competir com os melhores estabelecimentos de ensino do Brasil, e que fosse o ornamento e a coluna vertebral do nosso Comissariado.
Recebido, com imensa alegria, por todos os confrades, alunos e amigos, apenas instalado como diretor, já cogitava dos melhoramentos mais necessários, fazendo, ao mesmo tempo, cálculos para as futuras construções. Fazendo uma rigorosa economia e pedindo o auxílio imprescindível da Província Franciscana Holandesa, obteve aos poucos, os recursos necessários, e foi assim construindo, em três etapas bem distanciadas, todas as dependências do nosso educandário. Foi um trabalho titânico, mas sempre feito com otimismo, e com um bom humor que nunca o deixava. Porém, perdia esse bom humor, tornando-se agressivo mesmo, se o trabalho dos padres fosse menosprezado ou caluniado. Nesse caso, era intransigente para com o caluniador e só descansava depois de lhe ter posto o pé no pescoço. Foi o que aconteceu com o deputado federal Basílio de Magalhães que teve a ousadia de, em plena Câmara Federal, atacar aquele "Ginásio apalaçado" de S. João del Rei, onde os Frades somente pensavam em acumular dinheiro e onde não se fazia caridade alguma em beneficio de alunos pobres. Frei Estevão ficou indignadíssimo e, in-continenti, publicou uma "Carta aberta ao deputado federal Basílio de Magalhães", na primeira página dos principais jornais do Rio de Janeiro, lançando-lhe o repto de, pessoalmente, vir ao Ginásio, onde lhe seriam apresentados todos os livro que desejasse; para a devida verificação, se sim ou não o Ginásio Santo Antônio fazia caridade. O fato de os Frades não fazerem alarde dos seus atos caridosos, não lhe davam direito de caluniar o nosso estabelecimento. Essa carta aberta, como era de esperar, fez celeuma entre todos os deputados, principalmente entre os seus adversários. Não havia saída; não podia apresentar subterfúgio algum; e, poucos dias depois, apresentou-se aquele deputado para a respectiva verificação.
Entretanto, frei Estevão conhecia bem a sua gente e, só depois de ter chamado dois amigos para servirem de testemunhas, entregou-lhe os livros; mas somente depois dele ter dado a sua palavra de honra de não publicar ou indicar as famílias que eram contempladas pela caridade dos Frades. Começou o exame e não havia jeito de negar; os livros ostentavam, a olhos vistos, em toda a sua extensão, a caridade em benefício de alunos pobres. O próprio deputado tinha que reconhecer isso; mas, para salvar a sua figura, publicou nos jornais um artigo afirmando que a caridade se limitava a famílias que não precisavam disso; e mesmo que não citasse os nomes, descrevia essas famílias de tal modo que todo mundo sabia de quem se tratava. Frei Estevão ficou indignado e, mais uma vez, publicou nos jornais, em lugar bem destacado, um pequeno artigo em que pedia desculpas às respectivas famílias, por ter tido confiança na palavra do deputado Basílio de Magalhães. Este, nunca mais teve coragem de atacar, publicamente, o Ginásio Santo Antônio.
Foi esse o trabalho de frei Estevão: engrandecer, cada vez mais o Educandário e zelar pelo bom nome do nosso Ginásio.
Mas, todo esse trabalho consumira, paulatinamente; uma boa parte da sua saúde. Já por duas vezes tivera um ataque de angina pectoris, chegando a cair da cadeira onde estava sentado. No Capítulo de 1934, foi exonerado da diretoria do Ginásio; e, quando, no princípio do ano de 1935, foi à Holanda, em gozo de férias, foi e não voltou mais ao Brasil; porém, continuava sempre em comunicação com os confrades e amigos daqui, inteirando-se, constantemente, do engrandecimento do, hoje em dia, Colégio Santo Antônio.
Mesmo na sua última carta, escrita no mês de setembro deste ano; exprimiu as suas saudades do Brasil, lembrando a sua vida nesse Educandário.
Mas, as forças iam diminuindo; e, em 23 de setembro, entregou a sua alma ao seu Criador, esperando a recompensa prometida aos batalhadores fiéis e intrépidos.
Por Frei Lourenço van Veen, a partir da p. 162
Fonte: Revista dos Franciscanos da Província Santa Cruz, 1947, p. 161 a 164.