IN MEMORIAM
Recentemente recebemos a notícia do falecimento de frei Hilário, na Holanda. Muito embora o confrade em 1950 não desse o passo definitivo de entrar na Província da Santa Cruz, viveu e trabalhou o tempo suficiente no Brasil, para o doloroso fato de sua morte encontrar repercussão em nosso meio. Em virtude dos serviços prestados no país durante 25 anos, merece, qual filho da própria casa, um "In memoriam", um gesto de saudação como preito de apreço e gratidão.
Para o desempenho desta piedosa tarefa, foi escolhido o colega de turma, na hipótese de ser ele o melhor informante acerca da estada de frei Hilário no Brasil, sem que fosse prestada atenção à existência e fontes mais novas e, a certo respeito, mais ricas. Nossos caminhos, logo após o clericato, tomaram, salvo raríssimos encontros, direção bem diversa, de maneira que não estou bem a par das atividades "in loco" do nosso confrade, de seus sucessos e insucessos, de seu trato no ambiente doméstico; portanto, justamente da parte que interessa ao leitor, a quem pouco hão de dizer algumas notas e particularidades dum tempo remoto. Mesmo assim, não quero furtar-me a um amável convite, e com satisfação escrevo algumas palavras sobre o companheiro com quem desfrutei uma convivência de sete anos em conventos da Holanda, tempo relativamente curto, na mocidade porém mais amplo do que um triplo de anos mais tarde.
Alguns dados do passado podem talvez espalhar alguma luz sobre fatos no futuro. Nasceu Huberto Adriano Broekhuyse aos 9 de outubro de 1889, e tendo trabalhado algum tempo em século, começou seus estudos no ginásio de Venray, quando já tinha 27 anos de idade. Imediatamente salta aos olhos o lado curioso de uma situação: uma garotada tendo um velhote em seu meio, um velhote que, pelo contrário e por sua vez, se sente um jovem e grande senhor, mil vezes superior a essa gentinha, ao ver dele "mal apertada da mamadeira Levando assim em conta tal estado de coisas e sabendo que frei Hilário tanto no ginásio como no convento sempre tem sido um Nestor, ninguém se admira mais da sua "atitude paternal", hábito que, reforçado por seu senso prático, facilmente o induzia a tomar a dianteira, resolver por si mesmo questões de comum interesse, dividir trabalhos, na santa suposição de estarem os outros de pleno acordo.
Desde a entrada no convento aprendemos a aceitar as asseverações do nosso "Broek" cum grano salis. Gostava de exagerar, de "mentir" a valer, no noviciado, sustentando por exemplo, com a cara mais séria do mundo, que vários meses não tinha dormido, nem por uma hora sequer. Não obstante, apreciamos sua conversa, pois espirituoso que era, lançava expressões das mais pitorescas e das mais cômicas, deixando-nos, várias vezes, quase a morrer de tanto rir. Afinal era benquisto por causa da sua bondade, sua generosidade e seu espírito prestimoso.
Partindo em janeiro de 1925 da friíssima Holanda, aportamos em 13 de fevereiro ao quentíssimo Rio de Janeiro, donde, com pouca demora, Hilário seguiu para São João del Rei, a fim de ser professor, honra que nunca esperara nem almejara. A maior parte de seu trabalho ficou no Rio Grande do Sul, trabalho de cuja quantidade e qualidade nada sei dizer. No exercício de suas atividades aí, deve ter revelado um talento que nos tem escapado, por ter atraído sobre si a atenção dum mui ilustre advogado Dr. Adroaldo Mesquita, ex-ministro da Justiça, com quem até os últimos tempos, estava ligado por uma sólida e sincera amizade.
Aprontando-nos para as férias em 1949, vi o velho companheiro em Cavalcante, suando por todos seus poros, limpando e lavando a cripta de sua igreja inacabada. Ao fim do ano trouxe da Holanda grande quantidade de valiosas prendas que - a um gesto do amigo - facilmente passaram pela alfândega, juntamente com a bagagem de vários outros padres. Lamentavelmente haviam de gorar os belos planos do vigário pelo próximo futuro. Certa precipitação e mais alguns mal entendidos, fizeram com que se decidisse a voltar para a Província-mãe, carregando suas saudades do Brasil, isto em fevereiro de 1950.
Quase estrangeiro em sua terra, dedicou-se, inicialmente, à cura de almas, evidentemente a contento dos Superiores que, ao ver seu gênio prático e ativo, o nomearam guardião com problemas intrincados a resolver. Ultimamente era reitor de freiras. Alcançou a idade dos fortes e há pouco pudemos prometer-lhe ainda vários anos à vista de sua robusta constituição, que nunca sofreu sério abalo. O peregrinante e forasteiro foi chamado, mas ao transpor o limiar da eternidade, tem talvez um tanto de viajar.
Requiem aeternam dona ei Domine, et lux perpetua luceat ei. Oremos por ele.
Por Frei Letâncio Vaske
Fonte: Revista dos Franciscanos da Província Santa Cruz, 1960, p.42-43.